terça-feira, 30 de novembro de 2010

Zeus era o plural de...

Zé serve prá tudo
Zé e suas mulheres: muitas
Zé-Maria só prá começar
Zé é sabedoria
Zé da cabaça, Zé pedreiro, Zé da faca...
Zé já é mais que adjetivo e substantivo
Zé foi o pai do Cara!
Zé tá na minha casa, na tua casa
Nas paredes
Amanheci e comi com manteiga um bom dia do Zé
Ribamar!
José já vai longe do Zé
Zé é a perfeição da palavra na medida do pensar
Zé não me pegou: por imperfeição...
Hoje o poeta diria: "E agora, Zé?"
Zeus era um Zé e não sabia...

domingo, 28 de novembro de 2010

Deus e sua goma de mascar de anil presa no palato. Devagarinho faz bolas e sacode a gente nesse azul sem fim.

J.H.R
Pisca e pisca
O pisca-pisca
Não acende
Embaça
Passou
Já é dia...
Obscureceu de céu

J.H.R

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

...“ pode-se aprender tudo, inclusive a amar! E o mais estranho, Lóri, pode-se aprender a ter alegria!"


(Clarice Lispector)

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Ou pode ter sido isso...


Quem é quem sabe? No que vai dar essa tentativa de auto-encontro? O que se dizer um ao outro naquele exato momento impreciso? Aquele que sente e aquele que sabe num estranhamento que é quase impossível dizer que são da mesma entranha. Ambos de carne crua e querendo nascer. Diga-me! O que dirão um ao outro? Acredito apenas que haverá um topor, na fluidez de sangue, ora um pálido e anêmico, ora um pulsante e corado. Mas isso não é dizer, mas também não é silenciar. Então pode-se dizer uma frase para isso que não significa nada, mas é o corpo falando: febre vermelha de sede azul nos olhos sons verdes de ondas de sal no nascer do sol de um dia estrelado de lados opostos para um vértice de lua em plena minguância de verniz que ilumina o dia... assim disse o corpo de si para si em nome de nada e em proveito da vida...

J.H.R

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Cratera

Daqui
Pode-se ver:
a eternidade
termina logo
ali.

Vera Americano

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Entre-vistas

Vi dentro de um olho:
Um pré-pensamento
De branco agudo em baixo volume -
Sussurro.
Veio:
Lunar,
Lunático.

J.H.R

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Caderno de Andarilho

"Uma coisa que o homem descobre de tanto seu encosto no chão é o êxtase do nada."


Manoel de Barros

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Ocaso-Acaso

Vinha correndo, atrasado, pensando em tomar o elevador o quanto antes. A uns três passos dele vinha uma executiva, mexendo muito em sua pasta, em busca de algo. Nesses movimentos deixou cair uma moeda, já muito próxima ao elevador. Ela olhou a moeda e a deixou para trás. Num movimento brusco, ele tentou pegá-la a tempo, porém – sem unhas – demorou alguns segundos. Ao se erguer pôde vê-la embarcando no elevador. Levantou a mão e gesticulou para ela. A executiva, feições de oriental, cabelos compridos e lisos, em sua saia preta e blusa cinza, pasta preta fina, liberou rapidamente sua mão direita e fez o nome da cruz. A porta se fechou.

Paralisado diante daquele gesto, fitou a moeda. Foi aí que reparou não se tratar de uma moeda tradicional. Além de muito pequena, fina, tinha um furo no meio. Pensou logo que não se tratava de algo importante.

Ao tomar o elevador, lembrou-se do gesto daquela mulher. Por que o nome da cruz? Ao chegar no escritório, foi pesquisar sobre aquela moeda. Tratava-se de um yen. Refletiu também que todos os seus amigos, orientais ou descendentes, não tinham hábitos cristãos. Então por que aquele gesto? Esqueceu.

Na manhã seguinte, ao chegar novamente ao trabalho, conversou com alguns seguranças e na recepção geral sobre a executiva oriental. Ninguém pôde lhe dar maiores informações. Não havia alguém com aquelas descrições trabalhando no prédio. Certo. Era uma visitante.

À tarde foi chamado pelo gerente geral. Acabava de ser promovido para aquele posto que vinha há anos pleiteando. Houve comemoração com os amigos em um happy hour no mesmo dia.

Surpreso foi acordar com um “alô” sensual. Tratava-se de uma incrível mulher que ele vinha há meses tentando sair para tomar um vinho e ter uma conversa casual (é o que ele dizia). Ela apenas disse: “quero te ver hoje, às nove, rua tal, número qualquer”. Ele gravou imediatamente. Terminou essa noite com uma promessa “assustadora” de amor.

Embora fosse uma pessoa céptica, tinha por hábito preencher os cupons de promoções dos hipermercados. No mês de dezembro, em virtude da proximidade do Natal, os prêmios eram consideráveis. O telefone toca e anuncia que havia sido sorteado na última rodada. Ahh!! Aquele jeep 4 x 4 simples era um sonho!!!

O fato é que sua vida se transformou. Pequenas coisas que se moviam para um objetivo positivo. Tudo se encaminhava, como se um jato de luz tivesse baixado por uma conjunção de astros.

Num dia de muito trabalho, naquela jornada de quase doze horas diárias de labuta sem sentido, lembrou-se da executiva. O nome da cruz... sim, o nome da cruz...abriu a carteira e olhou novamente a moeda. Será? Todas as coisas se encaminhando. Será um anjo?

Pensou em agradecer. Como nunca havia entrado numa igreja, por vir de uma família sem tradição religiosa, ficou pensando como faria. Por trabalhar no centro da cidade, lembrou-se da velha catedral do século XVIII. Desceu e se dirigiu ao templo. Sentou-se e reparou o quanto estava silenciosa e triste. Como não havia qualquer outro “fiel”, balbuciou algumas palavras meio sem jeito e sentido. Daí lhe veio imediatamente uma idéia: “tentar a sorte grande. Um jogo! Por que não?” Ao se levantar, ouviu um “o nome da cruz”. Virou-se rapidamente para o lado, com a pele arrepiada e constatou o que já sabia. O local estava vazio.

Chegou na avenida, avistou, do outro lado da rua, uma placa com os seguintes dizeres: “A bola da vez”. Sorriu! Deu um passo e foi estraçalhado por um ônibus.

J.H.R

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Construindo um personagem.

Apresento-me. O que disso poderá ter proveito é uma questão que não me diz respeito. Quando aprendi a ler e escrever ninguém me disse para que servia. Ainda não sei. Apenas uma vez queria ser sincero, ao extremo, verter uma verdade infundada, pois que não existe verdade pessoal. Tive sim medo de nascer. Vim prematuro e respirando mal. O que se sabe é que alguém me deu um ponta-pé e me colocou no mundo antes do tempo. Para mim e para ele. Nunca perdoei. Perdoar é coisa de santo e isso não sou. Nunca fui! Tentei ser normal a vida inteira e ela não deixou. Fui uma criança franzina e sorridente, embora a falta de ar me tenha dado um papel de espectador. Sempre achei que ganhar o que não se pede é pura falta de educação. Bem cedo vi três mulheres pintadas com cara de palhaço, sendo agasalhadas pelos bombeiros. Meu primeiro exemplo de força. Por três vezes ainda caíram ao meu lado, sujeitos anônimos, língua enrolando e babando. Desejo de retorno. Meu primeiro senso de responsabilidade foi designado por uma desconhecida: passear com o seu cachorro pelo menos uma vez ao dia. Sua serviçal incorporava às vezes e me dizia coisas do passado e do futuro. Meu primeiro contato com a vida após a morte. Fui matriculado no jardim de infância público. Pegou fogo antes de minha entrada. Soube que em suas ruínas fumavam e cheiravam coisas perigosas. Fui direto para o primeiro ano. Tive medo. Chorei. Pediram-me para fugir das professoras gordas e com óculos. Meu primeiro contato com a tirania. Desse primeiro dia de aula, ainda sinto o cheiro de café na cozinha, o vulcabrás esmagando os dedos e alguém num rádio velho chorando: “eu chorei na avenida, eu chorei..” Sim, era uma atmosfera afirmadora. Vence ou sucumbe. Não custa dizer que cantávamos o hino nacional em homenagem aos porões que ninguém sabia. Meu dia de nascimento e signo foram apontados como sendo dos profundos e melancólicos. A senhora sabe o que é profundidade? Só pude entender um pouco melhor a vida quando me apresentaram os bichos. O sorriso dos bichos vem com os olhos. Tive muito medo de Deus. Quem não teve? Sabe tudo, vê tudo e ainda castiga. Na minha época padre era vestido de luto. Um dia ouvi Romaria, com a Elis tristonha: “como não sei rezar, queria mostrar meu olhar... meu olhar”. Poeta sujeito-bicho como eu. A única bondade que desenvolvi sozinho foi a de não aceitar injustiça. Queria estar ao lado deles, mas depois entendi o motivo: meu primeiro senso de rebanho. A senhora pode entender o meu perfil psicológico? Então me dê uma benção. Um dia quis ser um só com uma menina. Chamaram de saliência e pouca vergonha. Bem tarde uma mulher que não queria sexo algum comigo disse-me se tratar de amor. Algo iluminou o meu escuro interior. Crianças colecionam quinquilharias guardadas a sete chaves. “É meu, não mexa”. O fato é que tem uma hora que é preciso escolher: vou bater ou vou apanhar. Vou fazer parte ou me afastar. Amar ou fingir. Coloquei essas palavras num saco de papel, com letras separadas, sacudi e deu no que deu: EU! Duas letras! Senhora, duas letras!!! Nem me venha falar como é no inglês! A minha designação devia ser no mínimo ANTICONSTITUCIONALISSIMAMENTE. Não é que esse tamanho represente qualidade, mas a tontura que se é SER. Pelo bem ou pelo mal, assumi uma cadeira de juiz. Um deus na terra! Não, não combinou. Maldita hora em que fui ler Crime e Castigo, a G.H e a sua paixão, Riobaldo em guerra com o diabo, Mersault estrangeiro em Argel. “Afasta de mim esse cálice”. “Crepúsculo dos Ídolos”. Minha senhora, me ensina a ser um indivíduo comum no meio do nada? Não pense que desisti: tenho carro, tenho emprego, casa, filhos, fui casado e já vi o mar. Mas a verdade mais fundamental e terrível que tive acesso foi: pode-se mentir e enganar quem se ama. Depois disso ainda é possível se escandalizar com a fome, guerra, tortura e ideologia? A senhora poderia me fazer a gentileza de me dizer: eu tenho um perfil psicológico?

J.H.R

As palavras e o sentir...

Existir é uma coisa; viver uma outra. Conviver nem se fala. Comer é assim; alimentar-se é totalmente o contrário. Ter cuidado com o que se diz não é pensar. Pensar é outra coisa. E amar? Isso é algo que os seres humanos ainda estão tateando. Gostar é muito simples. Apaixonar-se é algo doentio. Amar é quase etéreo, fugidio e consenso sobre isso é uma faixa de Gaza.

Dicionário: “Amar.[Do lat. Amare.] V. t. d. 1. Ter amor a; querer muito bem a; sentir ternura ou paixão por. 2. Ter afeição, dedicação ou devoção. 3. Sentir prazer em; apreciar muito, gostar de.” Ainda tem mais nove acepções, tudo muito próximo.

A primeira delas não serve. “Ter amor a” não diz nada. Ninguém sabe o que é. “Sentir ternura ou paixão por”. Ternura e paixão estão muito longe do amor, diriam todos. “Sentir prazer em; apreciar e gostar de” são referentes, muito provavelmente, às coisas, objetos em geral. Amor existe?

Uma colega de trabalho me dizia um dia: “o que me irrita em você é que, embora seja um homem maduro, ainda acredita em amor romântico. Hoje em dia não está na moda. Essa coisa de passar pela paixão, coração na mão, palpitando... quando se passa direto para o amor é que tudo realmente acontece e permanece”. Fiquei intrincado com isso. Todas as vezes que disse “eu te amo” ou pensei que amava, tinha todo aquele processo de susto, descontrole, saudade; portanto, isso não é amor, vai ver que é paixão. Pelo menos para ela.

Conhecido meu quem disse. Conheceu uma mulher, visitou o Nirvana, casaram. A lua não foi só de meu. Foi de flores, bombons, jantares, vinho, meu bem, amorzinho e chuchu. Devia ter mais alguns, mas ninguém fala. Aquilo tudo era uma festa. Casa nova, os móveis, um monte de supérfluos para comer, um drinque à noite e muito sexo. Desculpa. Não se faz sexo com quem ama – faz-se amor. Logo chegou um bebê. A grana encurtou, o chefe está insuportável. As sogras, nem se fala. A cunhada que está um grude, não sai lá de casa. Tudo muito corrido. Daí um dia, ele chega em casa, toma um banho e relaxa. Chega perto da esposa, dá um beijinho, um abraço, desce a mão um pouco e ouve: “nem pensar, tira a mão daí!!!”. Isso foi na segunda, terça, quarta... e virou rotina. Ahh minha mulher não me ama mais! O mundo caiu. A esposa foi num aniversário da amiga. O marido da amiga chega com um buquê de flores, um beijo aqui, mãos dadas e tudo mais. Ela se diz: “isso é que é amor!”. Nem sabe da segunda, terça... deles.

Terapia de casal. Qual a sua reclamação meu amigo? Ela não me ama mais; não transa comigo. E o seu, senhorita? A lâmpada da área de serviço queimou há pelo menos um mês. Todo dia ele diz que vai trocar. Nas festinhas, sempre fica um pouco alto. Então, se não troca lâmpada, não tem sexo. Se fica um pouco alto, não “dou” para ele.

Mas afinal. O que é o amor? Escutei na fila do banco uma mulher dizer que “amor só existe um. O de mãe para os filhos”. Lendo sobre Jesus, São Francisco de Assim, Chico Xavier e Madre Teresa de Calcutá temos uma evidência estranha, se não estou enganado. Todos eram celibatários. Então o amor ao próximo não tem qualquer relação com o amor entre homens e mulheres? Esses ícones de amor à humanidade, que eu tanto respeito, falam de coisas a serem superadas: perdoar as ofensas, banir o ciúme, evitar o rancor, à inveja e outras mais”.

Suspeito que sejam amores diferentes. Sinceramente, não sei.

Um dia, parado no semáforo, olhei para o lado e vi um carrão parado. O cara estava com uma mulher de parar o trânsito. Olhei bem e percebi que eles estavam com aquelas caras de poucos amigos. Logo pensei na segunda, terça... deles. Disso eu agora tenho certeza: não invejo casal nenhum.

Encontrei um conhecido e ele me disse: “eu e a minha esposa/mulher/namorada/amante/companheira/amiga moramos em casas separadas”. Nossa! Pareceu uma reza, mas ele fez questão de repetir. Agora sim! Estou feliz demais e ela também. Tem lá os seus problemas: orçamento, criar os filhos, compromissos sociais etc e tal. Mas o saldo tem sido positivo. Então quer dizer que estão se amando novamente? “Psiu!! Psiu!! não me fale essa palavra!”. O que houve? Nada demais. Apenas fizemos um acordo, eu a minha ........, não pronunciamos mais. Toda vez que falamos “amor ou amar” é um problema dos infernos. Agora não falamos; sentimos.

J.H.R

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Acredite no Destino

Oito da manhã. De frente ao espelho desembolando um nó de gravata. Reunião às nove. Estou cantarolando “vai trabalhar vagabundo, vai trabalhar criatura... Deus permite a todo mundo uma loucura...”. Minha irmã me liga.

- Vou levar a mãe ao médico. Lembra daquela consulta importante?

- Claro! E daí?

- Daí que hoje eu tinha de passar na advogada e pegar a petição com a revisão da partilha de bens.

- Sem problemas. Vai outro dia, outra hora.

- Não! A advogada vai dar entrada hoje. Venceu o prazo. Você precisa passar lá agora.

- Mas não vou mesmo! Tenho reunião às nove.

- Vai rapidinho. Dá tempo.

- Cada uma! Por que a advogada não resolveu isso antes? Passa-me o endereço.

- A revisão é simples, coisa à-toa, mas é importante homologar.

Passou-me o endereço. Ainda falei baixinho sobre a advogada: “vaca!!!” Folgada!!!

Dirigi-me para o bairro da senhora advogada. Eu não a conhecia e imaginei ser aquelas chatas e autoritárias.

Toquei o interfone. Apareceu uma mocinha. Pediu-me para entrar e aguardar. Ao entrar na sala, sentei-me e fiquei surpreso com a decoração. Tinha um ar leve, ainda em meia-luz, cortinas brancas, soltas e leves. Tapetes discretos mas aconchegantes. Quadros belíssimos. Aquele ambiente tinha um cheiro tão gostoso e ao mesmo tempo calmante. Tive a sensação de que tudo aquilo era para ser comido! Vê se pode. Sempre tenho um estranhamento quando sinto isso.

- Bom dia! Disse-me alguém. Procurei e vi, atrás de uma parede, um rosto lindo, uma boca carnuda, cabelos compridos e meio bagunçados. Como estava meio de lado, escondendo o corpo, vi o ombro esquerdo pouco bronzeado, com uma alça de alguma roupa caindo até ao meio do braço. Olhando bem percebi que a metade do seio estava totalmente para fora. Assim, cheio, arredondado e chamativo.

- Bo.. bo... bom dia! - pensei: que coisa! Por acaso agora sou gago! Não imaginava que era essa a tal advogada. Ela não é uma vaca..é sim, não é...é sim.. folgada! Fogosa!! chega: não é e pronto!

- Desculpe-me. Não sabia que vinha tão cedo. Ainda estou de camisola, tomando o meu café.

- Não se preocupe. Dê-me o documento, vejo as recomendações da minha irmã e vou para o trabalho.

- Houve um imprevisto. Ontem, ao sair do escritório, esqueci de colocar a petição na pasta. Vou ligar agora para o mensageiro trazer. O motoboy voa e logo estará aqui. Ligou.

Eu estava paralisado com aquela imagem. E a minha reunião? Vão comer o meu fígado. E aqueles seios? Aquela boca carnuda! Aquele conjunto.. Minha mente estava bagunçada. Engoli não sei o quê. Ela percebeu.

- Quer um suco? Enquanto espera.

- Sim. Por favor.

- Passe para cá.

Quando fui levantar fiquei frio, pois já havia um volume em minha calça. Foi inevitável.

- Vem – disse-me.

- Claro!

Levantei-me já com a mão esquerda no bolso, caminhei, contornei por aquela parede onde ela se escondia. Era uma copa ampla, uma mesa para oito lugares. Na lateral havia uma porta enorme, de vidro, um pouco aberta, que dava para uma varanda, com cadeiras modernas, que pareciam confortáveis. Não pude deixar de notar o belo jardim, com uma piscina ao fundo.

De repente, me sai a advogada com uma jarra de suco na mão. Era alta, cabelos caindo para frente, perto dos seios, com aquela camisola longa, marcando um corpo esguio. Gostosa. Aquele tecido da camisola, ao mesmo tempo que marcava, também se movimentava, dando uma sensação de desejo de toque. Toque? Sim. Parecia um violoncelo, mais afinado. Eu dava um Sol sem Dó. O que é isso? O que estou pensando? Música, sol, afinação... tocar. Eu estava sem controle. Odeio quando isso acontece. Não consigo ter um pensamento linear, para um diálogo simples e direto.

- Sente-se. Desculpe-me ficar assim de camisola, mas abusei do sol nesse fim de semana, principalmente ontem. Estou que nem consigo me vestir direito.

- Não se preocupe. Servi-me de suco. Foi nesse momento que percebi que aquele cheiro agradável que senti ao entrar era do violoncelo. Quero dizer, da Dra. Katia. Katia Slonska.

- Ando trabalhando muito. Nesse fim de semana, resolvi parar tudo e tomar um sol. Além de estar me sentido muito branca, isso me ajudaria para uma melhor saúde.

- Isso é preciso. Precisamos renovar as energias com sol e caminhar descalço na grama ou na terra.

Eu estava parecendo um aparelho captador de sinestesia. Aquilo tudo, misturado, desejável estava me perturbando. “Ó formas alvas!”. Nessas horas e eu aqui lembrando de poeta.

A Katia terminou o seu café, passou por mim, abriu um pouco mais a porta da varanda e sentou-se. Encolheu uma perna, pisando com o pé esquerdo na cadeira. Pegou a barra da camisola e recolheu para o meio das pernas. Da posição que me encontrava, pude vê-la de lado. Metade das coxas descobertas, firmes, roliças. Uma pequena tatuagem na lateral, na altura da panturrilha. Dessa posição é que pude notar com mais precisão o volume dos seios, querendo pular para fora do pano. Agora é que não posso mais sair dessa cadeira. Imaginar aquele corpo, os beijos, minhas mãos passeando por ali sem pressa... meu corpo respondeu ao desejo.

Acendeu um cigarro. Levantou levemente a cabeça e direcionou a fumaça para cima. Que quadro impressionante! Puxou uma cadeira, que dava de frente para ela e disse-me: “senta aqui”. Levantei e fui. Acho que ela pensou que eu tinha a mão presa no bolso.

Encostei-me no portal da varanda. Seria complicado ficar sentado assim logo de frente. Meio encostado, com o ombro direito, mão esquerda no bolso, fiquei ali contemplando aquilo tudo. Pensei no destino. Pensei na reunião. Pensei no “eu digo sim”, no Amor-fati. A vida é sempre um presente. Será? Bem, não posso ir embora e dar essa impressão que sou assim bagunçado das idéias, perdido em sensações complicadas, misturando música, boca, violoncelo.. etc. Na verdade, isso se passava apenas na minha mente. Ainda não tinha dito nada. Como é que ela poderia pensar isso ao meu respeito?

Foi aí que me compliquei. Ouvi um barulho forte, de passadas rápidas. Quando menos esperei, um mastin napolitano enorme colocou as patas sujas em meu peito e lambeu a minha boca, com aquela baba toda. Além de babado, estava com o paletó e gravata sujos de terra vermelha. O pior é que o maldito ficou assim me namorando. Suavemente ela disse: “Thor, venha aqui”. Ele foi e se deitou ao lado dela.

- Ele gostou de você. Incrível. Ele só faz isso com as pessoas de casa. Essa lambida na boca é o dizer dele: “somos da mesma matilha”.

- Katia, somos da mesma matilha?

- Como é?

- Desculpa...- vermelho -... Você gosta de mato??.. gosta de ilha????

- Você está bem? Olhava-me da cintura para baixo, reparando o volume...

- Sim, estou. Bem, não estou. Essa minha roupa..

Levantou-se. Disse que cuidaria disso. Foi lá dentro, voltou com um pano e um produto. Achei que fosse me entregar. Ficando bem perto de mim, molhou o pano e foi limpando minha gravata e o paletó. Podia sentir a respiração dela. Que perfume é esse meu Deus!!!! Levantou os olhos, me olhou fortemente, a uma distância de uns quatro dedos. Minha boca encheu d'água. Virou-se e saiu.

Como pude fazer isso??? Jamais terei outra oportunidade. Agora ela estava novamente na varanda. Nessa hora não lembrava nem mais o meu nome, o que dirá da reunião, do carro, do cão... de nada. Só dela!

Sentei-me por ali. O mensageiro do escritório demorava e isso me agradava.

- O que tem feito pela cidade? Disse-me.

- Às vezes um cinema, um bar, teatro, um pub. Gosto muito da orquestra sinfônica.

- Jura??? Ela realmente ficou surpresa.

- Sim. Vou sempre que posso. É emocionante. Adoro as violas - só agora fui perceber que as violas tinham um chamado sexual para mim.

- Você poderia me levar um dia?

- Levo sim. É sempre nas segunda-feiras.

- Ahh não queria esperar tanto. Pode ser hoje?

- Combinado. Nos vemos lá às oito?

- Sim.

O mensageiro chegou. Li a papelada e não entendi nada. Não conseguia me concentrar. Seja o que Deus quiser.

Fui embora e ainda me lembrei de Nietzsche: “Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: - assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas”. Fui cínico? Humano. Sei? O que acha?

J.H.R

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Um sentido a mais?

Sabe aquele estado de êxtase que às vezes entramos? Estamos na rua, no carro, em uma reunião de trabalho e o estado vem, sem pedir licença, se instala e quer ficar. Normalmente ele vem com sentido de que já vivemos isso, aquela situação, aquele estado maior em que a mente requer algo que não faço qualquer idéia do que se trata.

Como é com você?

O que me surpreende muito é o fato de vir lembranças “inexatas” de algo que tem plástica, movimento, atitude. Envolto nisso também vem alguma coisa de textura, cheiro, gosto e um estado emocional um tanto nublado. Quase sempre um nublado é cinza.

Veja um exemplo. Haviam encomendado algumas coisas em uma confeitaria. Fui buscar a encomenda. Cheguei lá no balcão/vitrine e entreguei o pedido. Logo abaixo de mim, tinham aqueles biscoitos pequenos, que se vendem por quilo. Tem um nome francês para eles. Não me lembro. O fato é que todo mundo pára ali e mete a mão e come mesmo. A variedade é razoável. Fiz o mesmo, um pouco mais tímido, coloquei um daqueles na boca, um gosto de coco ralado, misturado com um sabor meio de leite e manteiga. De fato é bom, com café então, nem se fala. Ao sentir o gosto, o estado de êxtase me veio. Era uma senhora com cabelos presos, com uma bola daquelas que as mulheres fazem mais ou menos no alto da cabeça. Acho que se chama coque. Um rosto redondo com um olhar macio e familiar. Sorriu para mim, com doçura. Caminhou de um lado para o outro no local onde ela se encontrava. Sentou-se, cruzou com dificuldades as pernas, com certa elegância, embora fosse um tanto gorda. Aquilo me soou como um “vem aqui, meu filho. Sente-se. Quanto tempo? Sabia que vinha e esperei tanto por isso.” A vontade que me deu foi a de pular nesse balão de imagens, escorregar para o outro lado e lá permanecer para um café da tarde.

Acordei” com alguém me cutucando. Era a atendente querendo me entregar o pacote. Perguntou-me se estava bem. Quase respondo que estava melhor lá onde de fato eu estava.

O que é isso que nos pega? Da onde vem? Que mecanismo dispara o botão que liga o processo? Que função biológica, fisiológica e mental ele desempenha. Suponho que algo de muito bom e importante ele representa. Mais que o sonho, mais que a intuição... é uma espécie de saúde a nos guiar, nos pedindo calma, serenidade, paciência. É como um torrão de açúcar no mundo de cá.

Certa noite, antes de dormir, deito-me, respiro fundo e faço uma prece. Fico ali, de olhos abertos ou não, esperando o sono chegar. Invariavelmente, alguém dispara um projetor de slides. Lembra daqueles projetores com pequenos quadros de 2cm x 2cm, utilizados para projetar as imagens em um quadro branco? Sim, mais ou menos isso. Daí eles começam. Um índio, uma vaca, um mar, um barco, um castelo, pessoas atravessando, trabalhadores rurais. Mulheres lindas e outras não. Movimento rápido ou lento. Tão claro, tão preciso, quase tocável. Mas isso tudo parece ser regido por uma regra: se quiser fixar a imagem e analisá-la, ela foge imediatamente. Por que? Já quis tanto interagir com algumas, mas alguém ainda não me estabeleceu as regras.

Imaginei contar isso para alguém. Sobre os cheiros de queimado, as correrias de cavalo, milícias com capacetes como o dos romanos, as sensações de gruta e os desenhos rupestres, aromas diversos e não identificados.

Alguém poderia me dizer assim. Veja bem. Os olhos humanos são poderosos em captar quase tudo o que está em nossa volta. Imagens e movimentos que nem sempre damos a devida importância, mas que os olhos captaram e isso se encontra no inconsciente. Não só as imagens, mas também os sons, os gostos e cheiros. Isso tudo, possivelmente, fica catalogado em algum “achados e perdidos” num canto remoto da mente. Imagine a hipótese. Um dia vi uma senhora na rua, ou na tv ou mesmo li e imaginei essa senhora. Nesse dia, comi um biscoito com um sabor qualquer. Anos e anos depois, comi um biscoito e o senhor cérebro foi lá no “achados e perdidos” e trouxe aquela imagem. Assim, tudo vai se movimentando e desencadeando os demais sentidos associados. Parece interessante, não é? Mas duvido.

A vida inteira, desde criança, sonhei com orientais. Já tive avós por lá. Já estive convivendo com uma mulher e duas crianças pequenas. Elas falam comigo o idioma oriental, que não sei qual é, escuto aqueles sons e entendo na minha mente “de hoje” em português. Já estive naqueles mercados com todos aqueles tipos de iguarias que nós ocidentais nem de ver de longe temos apetite de comê-las. Mas lá estou integrado. Numa fase muito difícil, todos os piores problemas e tristezas estavam imperando. Ao dormir, fui parar lá. Estavam todos me esperando, com roupas escuras, compridas para um dia de muito frio. Estava em um pátio imenso, silencioso e cercado por prédios parecendo aqueles galpões de mercadorias. Fiquei parado ali, sem entender. Daqui há pouco foram chegando as pessoas. Um grupo nem muito grande e também não era pequeno. Chegavam, faziam aquele reverência com a cabeça, apertavam a minha mão e me abraçavam. Aquilo me dava uma sensação enorme de conforto e paz. Parecia uma família, que se reuniu para ir ao encontro de alguém que estava há muito tempo viajando, que chegava ali dilacerado de uma grande luta, mas sabia que era preciso ainda retornar para onde veio, porém mais forte e reconfortado. Os que se despediam de mim, se retiravam cabisbaixo e tristes. Acordei com uma sensação enorme de paz e com muita saudade.

Já li e estudei sobre o assunto em literatura kardecista. Recentemente li uma autobiografia de Jung em que ele vivia coisas parecidas. Para alguns trata-se de vidas passadas; para outros pode-se dizer que é o inconsciente coletivo, ou algo parecido. O fato é que esse processo não vem somente quando dormimos, mas também em plena atividade.

Será mais um sentido? Abstraindo para uma imagem, é como se tivéssemos uma inteligência circulando o corpo, com um energia a uma distância de meio mícron, onde temos um acesso regular, de forma que tudo o que foi vivido está ali impresso. Uma antena nos liga a isso, porém num grau diminuto e regulado, de forma a não interferir prejudicialmente nas condições atuais em que vivemos. Essa energia, possivelmente, regula com as demais pessoas, coisas, objetos, animais e com a energia que envolve tudo isso. Essa energia toda unificada será o Deus? Se tudo está interligado, envolto, transmutado, transmitido e integrado, supõe-se que quem está no controle dessa totalidade seja onipotente e onisciente.

Nós e o Deus somos um sentido? Interagimos mesmo sem querer? Será por isso que, sem desejo algum, pensamos: “o telefone vai tocar” e ele de fato toca? Se você quiser, a partir de sua vontade, interagir comigo e disparar uma comunicação qualquer, o “telefone” vai tocar aqui na minha cabeça? Acredito que sim. É só mais um sentido...

J.H.R

domingo, 7 de novembro de 2010

Bebendo os vivos e os mortos

Aniversário da Patrícia. Para nós, seus amigos, é a Ora, que alguém disse um dia se tratar de oráculo. Pegou e ela aceita. Ela sempre pede para não comemorarmos no dia dois de novembro. Diz que fica dividida entre brindar aos que vieram ou chorar por aqueles que se foram.

Sempre respeitamos. Combinamos para o dia seguinte. A Ora escolheu aquele bar alternativo de sempre. Diz gostar dos “bichos-grilo”. De fato é muito bom o lugar. Um som de primeira: com muito blues, jazz e às vezes um rock and roll. Fiquei com o papel de chegar mais cedo para segurar uma mesa.

Lá pelas nove e meia, foi chegando o pessoal. Todo mundo brindando, falando do dia que tinha vivido e, invariavelmente, já tinham compromisso para aquela noite. Uma dose aqui e outra ali, logo o grupo foi se reduzindo.

Ao meu lado estava sentada a Santinha - apelido que recebeu do pai quando criança. No princípio a mãe odiava. Um dia a menina se vestiu para a primeira comunhão e lhe colocaram um lenço branco na cabeça com aquele vestido com cara de roupa de padroeira. Resignou-se, a mãe, emocionada. Desde então é a nossa Santinha. Fomos trocando as impressões de dias que não nos víamos. Ela é agente da delegacia da mulher. Quando ela recebe os batedores de mulher, o apelido fica meio sem sentido. Contou-me alguns casos e logo lhe dei razão.

Por volta das onze horas e meia, o grupo se reduziu a mim, Ora e Santinha. Já um pouco alegres, vinham me contando estórias sobre os seus bichos de estimação. Verdadeira família. Santinha vive com três gatos e Ora com suas duas cadelas. “É unanimidade, eles entendem tudo o dizemos e fazemos. Inclusive quando estamos tristes. Ficam preocupados e querem nos animar de qualquer jeito”. A Ora ainda disse “só não falam para não trabalhar”.

Daí a pouco chegou uma retardatária. Era a Roca. Gaúcha risonha, divertida e com aqueles olhões filmando tudo. Eu não a conhecia. Apresentaram-me. Ela cochichou algo para a Ora e me olharam. Ainda ouvi a Ora dizer: “não, nada a ver”. Depois que já tinha tomado seus tragos e nós ainda mais alegres, me contaram do que se tratava. Roca tinha perguntado se eu estava com alguém, se era um “caso” de alguma das duas. Com a negativa, com sua lógica ligeira, deduziu: é gay!

- Disse-me. Bá!! nada pessoal. Desculpe-me.

- Sem problemas.

- Sabe como é, néeee?. Hoje tá tudo bagunçado.

Com aquela alegria toda ainda refleti. Bar é um lugar de metamorfoses. Chegamos, sentamos, pedimos uma bebida e ainda somos operários, professores, médicos, empresários... no final, sem exceção, somos todos filósofos. Pensei na polis, nos pré-socráticos, com toda aquela tragédia, regados a um farto vinho e inspirados por Dionísio. De fato, isso é coisa antiga. Só estamos seguindo a tradição, embora com deuses diferentes e novas tragédias.

- Sabe? - Ora se dirigindo a mim – eu, Santinha e Roca não temos filhos. Eu e Roca já não podemos mais engravidar. A Santinha ainda tem uns dois anos pela frente. Estou tentando convencer a Santinha sobre uma coisa e queria a sua opinião.

- Claro! Pode falar.

- É assim. A gente quer que a Santinha fique grávida e divida a criança com a gente. Seríamos três mães da mesma criança.

Tomei mais um gole, para clarear mais a idéia.

- Espera aí, Ora, primeiro será preciso encontrar um pai que aceite três mães. Já pensaram e resolveram esse detalhe?

- Já sim. Queremos alguém que seja amigo, conhecido de longa data, que já tenha seus filhos, resolvido nesse aspecto. Afinal, vai ser apenas um doador.

- Humm entendi. Refleti um pouco. Olhei para os lados. Tomei mais um gole do meu Red. Quando voltei o olhar, estavam assim paralisadas e me olhando...

- Ainda tenho dúvidas – Santinha me olhando, como que para me salvar – pois eu é que vou gerar a criança, vou carregar na barriga, enjoar, engordar e outras coisas mais que dizem por aí. Depois disso tudo será que vou mesmo querer dividir?

- Queria saber de vocês três outro detalhe. Vocês vão morar juntas com o bebê?

- Roca – quase gritando – vocês estão muito preocupados com detalhes bobos. Era preciso primeiro ter o bebê já na barriga. Teriam nove meses para acertar os detalhes. Se ficarmos aqui pensando demais, o tempo fértil de Santinha vai diminuindo e nada de perspectiva de um bebê.

- Espera, Roca! Disse Ora me sondando, querendo entender os mínimos detalhes da minha expressão facial. Deixe ele falar. Afinal um possível pai nos fará perguntas parecidas.

- Acho que vocês deviam procurar um advogado. Bem, é melhor não! É capaz dele querer interditar vocês. O maior risco é a Santinha não querer depois dividir o bebê... que tal mudarmos de assunto? Esse assunto não combina com bebida, quem sabe amanhã não achamos uma idéia mais razoável?

Concordaram.

Santinha me contou que a idéia de Ora está motivada por causa de seu novo hóspede. Na verdade são três. Um casal jovem que tem um bebê de mais ou menos um ano e meio. Desde então não pára de pensar na hipótese de ter um para sempre. A questão é como convencer a Santinha. Convencer a Roca foi mais simples.

Santinha e Ora são amigas desde os treze anos. São como irmãs. Talvez mais que isso, porque tem um respeito e admiração invejáveis.

Ficamos um pouco em silêncio observando o lugar e reparando mais na música. Roca encarou um cara que vinha passando. Com aqueles olhões não escapava nada. Por isso que às vezes disparava um “o que você disse?”, porque o pescoço não parava quieto no lugar. Lá e cá, lá e cá... “nossa!! Você viu, Ora?”... não deixava de ser divertido. Acho que ela estava naqueles dias...

Em uma dessas viradas, parou me olhando e disse:

- o que você acha do orgasmo feminino?

- Hã??? o que disse?

- Isso mesmo. Assim, naquela hora, no meio do tesão, da loucura... o orgasmo. O que acha disso?

- Você quer saber minha opinião sobre a sensação de vocês, o êxtase, as contorções, etc? Ou o que ele representa, a sua função, porque ele vem e porque não vem?

- Quero saber qualquer coisa! Quero apenas que me fale. Fale algo!!!

- Saí com fulano outro dia – interrompeu Ora – aquilo sim é que é orgasmo.

- Não ando tendo sorte, Santinha falando do seu último encontro.

Ufa!! Escapei! Não que seja em si um problema, mas falar sobre isso naquele momento não me agradou.

Continuaram com as trocas de impressões (digitais ou não) sobre a liberdade sexual. O papel da mulher na conjuntura política e social. A mulher no poder. Observei bem e é bom ouvir isso diretamente delas, sem tradução por terceiros, ou melhor, por homens.

Assim, meio sem querer, como se estivesse pensando alto, Santinha falou, olhando para o lado, “na verdade toda mulher quer um homem para amar e ser amada, uma casa, filhos e tentar ser feliz”. Parou um silêncio frio naquela mesa. Pensei: “não difere do que os homens querem”. Tantas palavras e discursos para esconder o “simples”. Talvez venha daí esse gigantesco desencontro que notamos pela rua. Um monte de gente só e armada até os dentes. Isso, até o dentes, por onde passam as palavras.

Mas não podemos negar que as mulheres estão cada vez melhores. Decidem o que querem, fazem da vida a sua escolha, viajam, trabalham, são mães conjuntas, andam sozinhas por aí ou aos bandos. Analisam seus processos de orgasmo – não aceitam mais ficar sem ele. Nós, homens, estamos ficando para trás?

Pensei em pedir mais uma dose. Desisti. Elas estão muito altas. Vou me controlar por aqui. Pedi água. Na hora que se passou, com muita água, fui tomando o controle. Roca e Ora se levantaram para ir ao banheiro. Eu e Santinha corremos para ajudar a situação. As duas estavam com uma crisesinha de labirintite.

É melhor pedir a conta.

Fomos embora. Acompanhei a Santinha até a casa de Roca. A Ora iria ficar por ali também. Nos despedimos.

Em casa, no escuro, deitado e olhando para o teto, veio aquele sono bom, aos poucos, intercalado por bebê dividido.. bocejo... três mães numa mesma casa...viro de lado... santa padroeira... inconsciência...diga-me logo!! Orgasmo... orgasmo.... oráculo.

J.H.R

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

No Mato – sem preço...

Lá por volta dos meus vinte e poucos anos...

Não parava de ir ao sítio. Um lugarzinho maravilhoso. A uns 110 km da capital, 30 km de Cristalina. Passei centenas de feriados, finais de semana e também várias férias de trinta dias.

Apesar de já ter entrado na fase adulta, parecia que ainda prolongava por ali aqueles tempos de infância. Tinha de tudo um pouco. Centenas de galinhas, vacas, bois, cavalos, burro, carneiros, cabras, porcos. Lembrava a fazendinha de George Orwell, porém com poucos bichos andando em duas patas.

Tamanho era o pomar que vivia-se sem fome. De jaca a caju, de manga a mexerica, de caqui a graviola. A revoada de pássaros e cantos em todos os cantos. Manoel de Barros sabe bem disso: “Concerto a céu aberto para solos de aves”.

Vivia enfurnado pelos matos, vendo o rio, os pastos e perambulando o dia todo. Tinha aquela mata ciliar com o rio belíssimo. Água muito fria, transparente, com muitas pedras e corredeiras. A pura paz.

Inventei, em certa época, de pescar em lugar mais distante, com mata mais fechada. Eram seis horas de pescaria todos os dias. Pescar em rio quase sem peixe é um exercício de meditação. A mente voa. Imagina-se o fundo do rio, escuta-se um pássaro por horas. Bichos que estralam gravetos. Cutia que aparece do outro lado do rio, lenta, precisa. Família de jacus caminhando com seus pintos por cima das costas. Jibóia crescida subindo o rio sinuosamente. De vez em quando uma lontra. Visões de anos de solidão, pescando ali em silêncio e sem companhia. Certa vez resolvi levar comida para os peixes. Amarrava espigas de milho, jogava quirela de milho e também mandioca amarrada. Quando as capivaras não comiam tudo, ia aumentando o movimento da pescaria. Coisa pouca, mas no fim de semana a turma adorava aquilo tudo frito com a cerveja. O peixe era um pretexto para ficar ali, perdido, integrado e interagindo. Gostava tanto que ficava no meio daquelas tempestades e raios, só para ver estiar e vir aquele sol brilhando tudo em volta. É impressionante como após uma chuva os sons da mata duplicam. Parece saudação.

Algumas vezes vinham alguns comentários sobre o paciente pescador. Apesar de tantas horas, no final da semana, parecia até uma pescada razoável. Um dia de manhã, veio o garoto vaqueiro tirar leite. Comentou comigo que um amigo dele, do vilarejo, queria pescar comigo. Perguntou se eu não me importava. Disse que não – claro que não! Perguntei quem era o garoto. Apresentou-me. Travava-se do Euclides, conhecido como Crid. Tinha apelido de Costinha por causa do nariz avantajado. Fez recomendação de esquecer o apelido. Pedi-lhe que avisasse ao tal amigo para vir no dia seguinte.

Por volta das onze horas, estava ali debaixo das jaqueiras, ao lado de um tronco largo, antigo, caído, onde havia um verdadeiro húmus. Com um enxadão e pote, pegando minhocas. Aquilo era bater e minhoca pular para todo lado. Ficava cercado de um exército de galinhas, galos, frangos e pintos. Era incrível a coragem deles. Não admitiam tal iguaria não ser dividida.

Já com o pote quase cheio, em quantidade dobrada, visto que dividiria com o novo companheiro, ouvi um “tarde!”. Virei-me meio assustado porque estava concentrado e vi um senhor. Devia ter quase setenta anos. Calça de tergal lisa, camisa de manga comprida, botinas e um cinto apertando uma barriga avantajada. Apesar do chapéu de palha enorme, percebi alguns cabelos brancos, porque eu estava agachado, olhando para ele. Reparei aquela armação de óculos bem antiga, grossa e as lentes me pareceram bem embaçadas. Dia muito quente.

    Respondi:

    - Boa tarde! Pois não.

    - Eu sou o Crid. Vim pescar.

    - Prazer Crid. Meu nome é...

    - Já sabia, disse-me.

    - Você não trouxe suas coisas de pesca?

    - Sim. Trouxe. Deixei no caminho. Vô pegá lá na ida.

Peguei minha mochila, a vara de pescar e o saco de quirela dos peixes. No meio do caminho, ele entrou no mato e veio com sua vara de pescar que, pelo tamanho, dava para chegar quase até ao meio do rio. Reparei que ele vinha também com um saco daqueles de farinha de trigo que vemos nas padarias. Era tão alvo que parecia que nunca alguém o havia tocado. Vinha dependurado nas costas, parecendo o de um papai noel. Tinha um volume razoável. Logo imaginei que ele devia estar com alguma informação desencontrada. Para encher aquele saco de peixe, só com uns duzentos anos pescando ali.

No caminho foi me contando algo a seu respeito. Tinha dirigido o caminhão de lixo na Grande São Paulo por quase 40 anos. Agora vivia de sua aposentadoria. Tinha os seus problemas de pressão, deficiência cardíaca e uma alegria contagiante. Tinha vindo morar perto dos parentes. Não pude deixar de reparar que ele ouvia pouco, por isso falava muito alto.

Chegamos no local de pesca. Um poço verde, espelhado, com certa sombra daquelas árvores antigas. A água fazia a curva ali e descia mansamente. Como o lugar era apertado para dois, e também porque a vara de pescar do Crid era imensa, daria problema na certa se ficássemos juntos. A uns dez metros tinha uma grota, seca, com um tronco de árvore para atravessar para o outro lado. Ele aceitou atravessar, muito ressabiado com o vão abaixo. Com pouco equilíbrio chegou do outro lado e ficou lá satisfeito.

Coloquei minhas coisas um pouco atrás de mim, como de costume, para evitar que caíssem no rio. Preparei o anzol e dei uma olhada nas minhocas. Estava tudo certo. Atravessei pelo tronco da árvore e levei o pote de isca para ele, que tinha esquecido. Quando retornei e fui jogar a isca na água, vi que ele já estava pronto. Daí começou uma cantoria no maior volume: “minhoquinha, minhoquinha vai lá no fundo e traz um peixinho para o narizinho.” Não resisti e caí na maior risada. Nunca tinha ido pescar com tamanha barulheira. Para ele era como se estivesse sussurrando.

Enfim começou a pescaria. Nada de peixe. Passados uns dez minutos, levo o maior susto com ele me gritando:

    - Ei fulano! Quer um pedaço de rapadura???

    Respondi baixinho que não queria.

    - Quer ou não quer???

    Ele insistiu simplesmente porque não ouvia.

    Gritei que não.

    - Aqui não tem peixe não! Nem belisca!

A essa altura eu já estava rindo muito daquilo tudo. Hoje é dia de interagir e viver a presença dele – pensei.

Em meia hora compreendi perfeitamente o que aquele saco de farinha de trigo tinha por função. Ofereceu-me rapadura, queijo, uma dose de pinga, algumas espigas de milho assado, um pouco de farofa, uma cabaça com água, garrafinha térmica com café, algumas laranjas e limas e também alguns pedaços de pão. Como ainda não havia completado nem duas horas que tinha almoçado, vinha respondendo que não.

    - Ei fulano!! Você não é de comer, não?

    Respondi que tinha almoçado.

    - Gritou ainda mais forte que ele também.

Rindo muito daquela cena, fui para o outro lado e sentei ao lado dele. Abri o saco do papai noel e tomei um gole de pinga, mordendo um pedaço de queijo. “Ainda bem – disse-me ele – pensei que era fresco! Sujeito aborrecido de cidade.”

Voltei para o meu lugar e fiquei observando a paisagem. Tranquilo, tudo numa paz enorme. Ainda refleti – quando poderia imaginar que estaria aqui, nesse exato momento de um tempo universal, com alguém tão especial e cordial. Não foi uma fração de segundo do pensamento, ouvi uma barulheira e ele gritando muito. Estava dependurado e preso no meio de umas galhadas da beira do rio. Não sei como, mas estava meio de cabeça para baixo. Eu tive de sentar porque não aguentava de tanto rir. Foi só um instante para ele começar a me xingar de tudo quanto é nome. Corri para o outro lado, deitei-me no chão e ofereci-lhe a mão, porque era muito pesado e teria que arrastá-lo pelo braço esquerdo, até que ele pôde firmar o pé direito num galho e chegar firme no barranco. Ele estava branco de susto e muito nervoso.

    - Desculpe-me, não sabia que o senhor não sabia nadar.

    - Eu sei nadá sim!

    - Então porque estava gritando daquele tanto?

    - Porque meus braços estavam presos e tinha uma aranha enorme com as patas no meu narizinho!!

Rolei de rir no chão daquela mata. Sabe quando se começa e não consegue parar? Ele não aquentou e começou a rir muito também.

Acabou a pescaria. Ficamos ali conversando. Ouvi muitas história sobre ele dirigindo o caminhão na Grande São Paulo e a saudade que sentia dos tempos de quando era jovem. Também falou da esposa que deixou para trás e tantas outras coisas que me senti tão pequeno diante dele.

Pegamos o trilheiro de volta para o sítio. Na porteira, ao me despedir dele, me fez uma pergunta: “você é bobo assim desse jeito sempre? Rindo assim sem parar?” Não teve jeito. Sentei na beira da estrada e chorei de rir.

Muitas vezes depois, regressando ao sítio novamente, tinha sempre um presente para mim. Um cristal lapidado, uma rapadura, um casco de tatu. Tudo presente do meu amigo Crid.

Passados esses anos todos, estou aqui me recordando dele. Nunca mais o vi.

Saudade de você, Crid!

J.H.R

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Escondendo a saudade...

Como de costume, fui passear numa livraria. Circulei por vários corredores, folheando obras aqui e ali. É sempre a mesma história, como economizar e não levar tudo o que não se pode ler. Além do mais, hoje em dia as livrarias tem te tudo. Quero dizer, é tudo multimídia. Eu sou multimídia? Depois vou ver no espelho... papo estranho, deixa para lá.

O fato é que ao sair fui lá tomar o meu expresso favorito. Onde se vai hoje é pura elegância. Não sei se sou eu que sou muito simplório, mas as cadeiras e mesas são ergonômicas, toalhas bem postas e uma Iluminação com lâmpadas que nem sei o nome - mas parece que ficamos mais bonitos debaixo delas. Espaços amplos, teto transparente, xícaras especiais. Bem, mas o café é realmente delicioso.

Enquanto estou ali na primeira xícara e reparando o ambiente, também reparo as pessoas. Uma correria em pleno feriado. Tanta gente sozinha, a começar por mim. Rostos e olhares perdidos. Dá a impressão que atravessam a gente e também as vitrines. Lembra do Chico: “...nos teus olhos também posso ver, as vitrines te vendo passar ...na galeria..”

Daí saio da perplexidade com um sonoro: “e aí, mano velho!!!”

Era meu amigo Zeca com a Maria. Zeca é aquele tipo bom de papo. Anarquista graças a Deus. Maria é aquela delicadeza em pessoa. Terapeuta da alma.

- Está perdido aí?

- Sim, estou!

- Pode-se ver.

- Maria e aquele seu olhar hipnótico como sempre. Ela às vezes parece aquelas “chupetas” de bateria de carro. Liga uma na outra e há aquela transfusão de energia. Dela ninguém esconde nada.

- Oi meu amigo – disse-me Maria. Quanto tempo não nos vemos. Por onde andavas?

- Assim-assado. Por ali e por aqui. Estou terminando um projeto e não tenho tido muito tempo. Na verdade, não poderia falar para ela que ando trancado em casa, pensando no nascimento dos aminoácidos.

Zeca chamou o garçom e pediu um café também. Maria pediu um conhaque duplo. Sempre me surpreendo com isso. A impressão que tenho é que ela tem um motor gigante na cabeça. Muitas peças e engrenagens. É preciso aquecer aquilo tudo de uma vez.

Zeca disparou logo o seu dessabor.

- Porra! Dessa vez não vou pagar multa por não comparecer às eleições. Fiquei com medo dos caras voltarem. Que me perdoem Proudhon, Malatesta e Bakunin. Na boa, aquela maquininha de votar é até legal. Nunca tinha visto uma daquelas assim de perto. Minhas mãos estavam suadas e o coração disparado na hora de apertar o “confirma”. Hesitei por alguns segundos que me pareceram a eternidade. O garotão fiscal ainda tirou onda comigo: “alguma dificuldade aí, velhinho?”. Não mandei ele para aquele lugar, porque senão daria em porrada, polícia, aquela correria toda e tal. Tudo aquilo que eu adoro. Você sabe. Tenho mesmo é saudade da barricada de 1848. Então, apertei o botão e fui embora, sem antes dar um esbarrão violento no moleque que me chamou de velhinho. Nem doeu, ele era bombado de academia. Para falar a verdade, doeu mesmo foi em mim.

- Sim, sim... eu entendo, fui amenizando.

- E você, Maria – eu disse – depois dela virar de uma vez aquela dose dupla de conhaque. O que me conta de novo? Está namorando?

- Namorando!!! - assim meio abalada e vermelha com o conhaque, me respondeu. Por acaso tem homem nessa cidade?

- Como? Surpreso com a resposta.

- Quero dizer – ela consertou. Bem, vivemos em tempos diferentes. Sujeitos em franco processo de individuação. Um certo egocentrismo engolido por um desejo de nada. O egoísmo é tamanho que nem serve para troca de fluidos.

- Hã?? Troca de que?

- Ela emendou. Bem, eu como profissional posso dizer. Como todo mundo hoje em dia faz terapia e todo mundo é resolvido, porque ninguém mais está autorizado a falar de seus problemas, de ter uma conversa mais aprofundada, então resta muito pouco para se dizer um ao outro por aí. A ordem é “vamos rir e falar o trivial”, no meio daquela barulheira infernal, meia luz e aí ninguém olha ninguém e não se tem um clima. Desculpe-me, ainda sou uma mulher romântica. Nada disso de pegar na minha mão e dizer: “vamos ali rapidinho no motel ou no banheiro mesmo”. Eu quero um companheiro, educado, gentil, que lê, pensa e reflete sobre a vida, que seja amigo, atencioso e que construa algo comigo no meio dessa vivência caótica.

- Zeca, como sempre, disparou. Isso tudo aí é homem mesmo? Queria era ver um sujeito desse no meio da revolução, fuzil na mão, quebrando pau no peito, rolando ribanceira abaixo...

- Amigos, calma! Calma! O mundo suporta toda essa diversidade. Tolerância e convivência harmônica. Tem para todo mundo (como sempre começo mentindo para mim mesmo e convenço os outros sobre as minhas mentiras sinceras). O pior é que funciona.

- Maria acabou me perguntando sobre a Bia. Achei que poderia escapar da situação, mas não deu. Já ouviu dizer que, quando temos uma ferida, tudo cai ou aperta nela?

- Vocês dois vão salvar o mundo, disse-me Maria. Todo mundo comenta e eu até exemplifico em minhas sessões. Vocês se ouvem. Olham nos olhos e existe um respeito profundo. Não há ofensas à personalidade. Numa relação dessas impossível falar em traumas. Não me importaria de perder o emprego por causa do exemplo de vocês.

Pensei. Está me provocando a falar. Será que ela sabe algo? Respirei fundo e contei até mil. Nunca consegui vencer o meu desejo de falar.

- Pois então, meus amigos! Estou em cima da hora. Preciso ir.

- Espera aí, disse-me, Zeca. Quero saber se vai aparecer à reunião do movimento.

- Sim, estarei lá!

- Dessa vez chamamos um internacional, vai nos falar sobre autogestão e processo legislativo com participação direta.

- Humm muito bom! Não perderei.

- Manda um beijo para Bia, disse-me Maria.

Paguei o café e me dirigi ao carro. Fui caminhando com o Escafandro e a Borboleta debaixo do braço. Pensando que ainda teria de encarar aquele apartamento vazio, mordendo o coração para não ligar para a Bia. Ainda me veio aquele toque de seu perfume e (acho que isso é mediúnico) olhei violentamente para os lados. Sim, sofri. Todo mundo sofre. Uma semana sem vê-la. Toda hora olhando as mensagens no celular. Pulando feito um doido quando o maldito toca...

Sim. Somos todos ridículos quando estamos amando.

Será que todos aqueles olhares perdidos nas vitrines são por amor?

J.H.R

Derrete-se um horizonte alaranjado
Em olhos marejados
Não sei se vejo pelo copo que bebo
Ou se a maré está para cor ou corpo
Ou se bebi demais
Ou são os olhos que me vêem
Ou se fui bebido pelo horizonte
Sei-não-sei
De[belo]

J.H.R

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Mundo Pequeno - Manoel de Barros

I

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

II
Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama
e de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar
no horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas
de Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são mais
bonitas.

IV
Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas,
Sombra-Boa entardece. Caminha sobre estratos
de um mar extinto. Caminha sobre as conchas
dos caracóis da terra. Certa vez encontrou uma
voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não
tinha boca mesmo. “Sonora voz de uma concha”,
ele disse. Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares
conversamentos de gaivotas. E passam navios
caranguejeiros por ele, carregados de lodo.
Sombra-Boa tem hora que entra em pura
decomposição lírica: “Aromas de tomilhos dementam
cigarras.” Conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro.
Me disse em Iíngua-pássaro: “Anhumas premunem
mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer”.
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas:
“Borboletas de franjas amarelas são fascinadas
por dejectos.” Foi sempre um ente abençoado a
garças. Nascera engrandecido de nadezas.

VI
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas…
E se riu.
Você não é de bugre? – ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
gramática.

VI
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.


Mundo Pequeno
do livro “O Livro das Ignorãças” – ed. Civilização Brasileira.