Era um monólogo. Ela passeava pelos temas mais diversos, dando um enfoque no que havia de mais misterioso no amor, algo que ela traduzia em suas leituras poéticas e em seu piano, que exercitava nas noites em que eu estava presente. Era interessante permanecer por ali, horas e horas, em silêncio, até que me pego hipnotizado por sua boca.
Fiz um esforço absurdo para me desviar e pensar em algo diferente, mas via aqueles lábios em movimento, aquele abre e fecha, o som, a cor e também aquele movimento horizontalizado de um sorriso disfarçado. Passei a ouvi-la numa espécie de som reverberizado e com eco suave. Havia uma mixagem em minha mente. Era intenso o prazer ao ouvi-la dizer: "é uma ponte que nos liga em amizade ao movimento artístico, onde a poesia nos traduz em seu silêncio, que nos desenha um futuro de proximidade e fartura". Como isso era apaixonante! Por que isso? Éramos tão distantes! Para ela a minha figura era de mais um homem absurdo trivial.
Confesso! Não havia tomado sequer uma gotinha de álcool. Agora ela passava para o piano e iniciou um tema de blade runner, que eu tanto gostava, só para provocar o replicante que havia me tornado. Aquilo era um domínio... um demônio... eu desejava aquela escravização. Fechei os olhos para melhor perceber aquele som mas fui guiado para o interior do piano. Fiquei balançando naqueles martelos, batendo suavemente as notas que me vinham assim: bom, bem, lua, tua... Tua?????
Vendo meus olhos vidrados, disse-me algo assustador: "A mágica do olho, não a do olho-mágico, é a amplitude que se dá ao se transformar em verbo olhar. Esse olho carnal humano, frontal, é mais espetacular no que ele transforma de objeto-imagem em imagem-reflexiva. No seu caso, afetiva. Esta última, provavelmente, já não seja mais uma função do olho em si, porém atesta, confirma ou desvirtua, dando significado cognitivo à imagem. Muito me chama a atenção aquilo que o olho vê e não vemos. Ter um insigth de algo de maneira inesperada, com a imagem que se recorda e não se explica, como se alguém refletisse em nós aquilo que vê, além do controle que exercemos? Em todo caso...
Meu Deus!!! É uma feiticeira. Por quais caminhos ainda quer me levar? Pode-se escravizar um corpo mas uma mente já é demais. Vou-me embora. Já passa da hora. Beijo. Até amanhã.
Abro o olho quase agora e me recordo dela. Delirium Tremens.
J.H.R
Adorando os seus textos! A mágica... sempre a mágica. Como diz Gil, "mistério sempre há de pintar por aí..."
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