terça-feira, 2 de novembro de 2010

Escondendo a saudade...

Como de costume, fui passear numa livraria. Circulei por vários corredores, folheando obras aqui e ali. É sempre a mesma história, como economizar e não levar tudo o que não se pode ler. Além do mais, hoje em dia as livrarias tem te tudo. Quero dizer, é tudo multimídia. Eu sou multimídia? Depois vou ver no espelho... papo estranho, deixa para lá.

O fato é que ao sair fui lá tomar o meu expresso favorito. Onde se vai hoje é pura elegância. Não sei se sou eu que sou muito simplório, mas as cadeiras e mesas são ergonômicas, toalhas bem postas e uma Iluminação com lâmpadas que nem sei o nome - mas parece que ficamos mais bonitos debaixo delas. Espaços amplos, teto transparente, xícaras especiais. Bem, mas o café é realmente delicioso.

Enquanto estou ali na primeira xícara e reparando o ambiente, também reparo as pessoas. Uma correria em pleno feriado. Tanta gente sozinha, a começar por mim. Rostos e olhares perdidos. Dá a impressão que atravessam a gente e também as vitrines. Lembra do Chico: “...nos teus olhos também posso ver, as vitrines te vendo passar ...na galeria..”

Daí saio da perplexidade com um sonoro: “e aí, mano velho!!!”

Era meu amigo Zeca com a Maria. Zeca é aquele tipo bom de papo. Anarquista graças a Deus. Maria é aquela delicadeza em pessoa. Terapeuta da alma.

- Está perdido aí?

- Sim, estou!

- Pode-se ver.

- Maria e aquele seu olhar hipnótico como sempre. Ela às vezes parece aquelas “chupetas” de bateria de carro. Liga uma na outra e há aquela transfusão de energia. Dela ninguém esconde nada.

- Oi meu amigo – disse-me Maria. Quanto tempo não nos vemos. Por onde andavas?

- Assim-assado. Por ali e por aqui. Estou terminando um projeto e não tenho tido muito tempo. Na verdade, não poderia falar para ela que ando trancado em casa, pensando no nascimento dos aminoácidos.

Zeca chamou o garçom e pediu um café também. Maria pediu um conhaque duplo. Sempre me surpreendo com isso. A impressão que tenho é que ela tem um motor gigante na cabeça. Muitas peças e engrenagens. É preciso aquecer aquilo tudo de uma vez.

Zeca disparou logo o seu dessabor.

- Porra! Dessa vez não vou pagar multa por não comparecer às eleições. Fiquei com medo dos caras voltarem. Que me perdoem Proudhon, Malatesta e Bakunin. Na boa, aquela maquininha de votar é até legal. Nunca tinha visto uma daquelas assim de perto. Minhas mãos estavam suadas e o coração disparado na hora de apertar o “confirma”. Hesitei por alguns segundos que me pareceram a eternidade. O garotão fiscal ainda tirou onda comigo: “alguma dificuldade aí, velhinho?”. Não mandei ele para aquele lugar, porque senão daria em porrada, polícia, aquela correria toda e tal. Tudo aquilo que eu adoro. Você sabe. Tenho mesmo é saudade da barricada de 1848. Então, apertei o botão e fui embora, sem antes dar um esbarrão violento no moleque que me chamou de velhinho. Nem doeu, ele era bombado de academia. Para falar a verdade, doeu mesmo foi em mim.

- Sim, sim... eu entendo, fui amenizando.

- E você, Maria – eu disse – depois dela virar de uma vez aquela dose dupla de conhaque. O que me conta de novo? Está namorando?

- Namorando!!! - assim meio abalada e vermelha com o conhaque, me respondeu. Por acaso tem homem nessa cidade?

- Como? Surpreso com a resposta.

- Quero dizer – ela consertou. Bem, vivemos em tempos diferentes. Sujeitos em franco processo de individuação. Um certo egocentrismo engolido por um desejo de nada. O egoísmo é tamanho que nem serve para troca de fluidos.

- Hã?? Troca de que?

- Ela emendou. Bem, eu como profissional posso dizer. Como todo mundo hoje em dia faz terapia e todo mundo é resolvido, porque ninguém mais está autorizado a falar de seus problemas, de ter uma conversa mais aprofundada, então resta muito pouco para se dizer um ao outro por aí. A ordem é “vamos rir e falar o trivial”, no meio daquela barulheira infernal, meia luz e aí ninguém olha ninguém e não se tem um clima. Desculpe-me, ainda sou uma mulher romântica. Nada disso de pegar na minha mão e dizer: “vamos ali rapidinho no motel ou no banheiro mesmo”. Eu quero um companheiro, educado, gentil, que lê, pensa e reflete sobre a vida, que seja amigo, atencioso e que construa algo comigo no meio dessa vivência caótica.

- Zeca, como sempre, disparou. Isso tudo aí é homem mesmo? Queria era ver um sujeito desse no meio da revolução, fuzil na mão, quebrando pau no peito, rolando ribanceira abaixo...

- Amigos, calma! Calma! O mundo suporta toda essa diversidade. Tolerância e convivência harmônica. Tem para todo mundo (como sempre começo mentindo para mim mesmo e convenço os outros sobre as minhas mentiras sinceras). O pior é que funciona.

- Maria acabou me perguntando sobre a Bia. Achei que poderia escapar da situação, mas não deu. Já ouviu dizer que, quando temos uma ferida, tudo cai ou aperta nela?

- Vocês dois vão salvar o mundo, disse-me Maria. Todo mundo comenta e eu até exemplifico em minhas sessões. Vocês se ouvem. Olham nos olhos e existe um respeito profundo. Não há ofensas à personalidade. Numa relação dessas impossível falar em traumas. Não me importaria de perder o emprego por causa do exemplo de vocês.

Pensei. Está me provocando a falar. Será que ela sabe algo? Respirei fundo e contei até mil. Nunca consegui vencer o meu desejo de falar.

- Pois então, meus amigos! Estou em cima da hora. Preciso ir.

- Espera aí, disse-me, Zeca. Quero saber se vai aparecer à reunião do movimento.

- Sim, estarei lá!

- Dessa vez chamamos um internacional, vai nos falar sobre autogestão e processo legislativo com participação direta.

- Humm muito bom! Não perderei.

- Manda um beijo para Bia, disse-me Maria.

Paguei o café e me dirigi ao carro. Fui caminhando com o Escafandro e a Borboleta debaixo do braço. Pensando que ainda teria de encarar aquele apartamento vazio, mordendo o coração para não ligar para a Bia. Ainda me veio aquele toque de seu perfume e (acho que isso é mediúnico) olhei violentamente para os lados. Sim, sofri. Todo mundo sofre. Uma semana sem vê-la. Toda hora olhando as mensagens no celular. Pulando feito um doido quando o maldito toca...

Sim. Somos todos ridículos quando estamos amando.

Será que todos aqueles olhares perdidos nas vitrines são por amor?

J.H.R

3 comentários:

  1. Amei! Os seus textos estão cada vez melhores. E viva o amor! A única coisa capaz de nos salvar. E volto a repetir: o masculino é lindo e o feminino é mágico. E nós, mortais? Serpentes em fogo!

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  2. Tudo de bom isso aqui!!!
    Alguns textos têm sabor, sinestesia pura, capacidade de traduzir aquilo que carregamos em sentimento,olhares,impressões.
    Do amor: companhia, solidão, espera... É combustível humano.

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  3. Gostei muito, principalmente da linguagem simples e realista como forma de expressão. É é o tocar nas pessoas que torna interessante o sentir-se como um todo e não como parte. " Ah que bom, pensei que só eu via o mundo masculino assim!! " Isso é um bom sinal! rs

    A maior ferida do ser humano é seu próprio ego, ela dói, mas não conseguimos nos livrar dela. Seria como quebrar a personalidade para viver uma outra.

    Parabéns!

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