quarta-feira, 3 de novembro de 2010

No Mato – sem preço...

Lá por volta dos meus vinte e poucos anos...

Não parava de ir ao sítio. Um lugarzinho maravilhoso. A uns 110 km da capital, 30 km de Cristalina. Passei centenas de feriados, finais de semana e também várias férias de trinta dias.

Apesar de já ter entrado na fase adulta, parecia que ainda prolongava por ali aqueles tempos de infância. Tinha de tudo um pouco. Centenas de galinhas, vacas, bois, cavalos, burro, carneiros, cabras, porcos. Lembrava a fazendinha de George Orwell, porém com poucos bichos andando em duas patas.

Tamanho era o pomar que vivia-se sem fome. De jaca a caju, de manga a mexerica, de caqui a graviola. A revoada de pássaros e cantos em todos os cantos. Manoel de Barros sabe bem disso: “Concerto a céu aberto para solos de aves”.

Vivia enfurnado pelos matos, vendo o rio, os pastos e perambulando o dia todo. Tinha aquela mata ciliar com o rio belíssimo. Água muito fria, transparente, com muitas pedras e corredeiras. A pura paz.

Inventei, em certa época, de pescar em lugar mais distante, com mata mais fechada. Eram seis horas de pescaria todos os dias. Pescar em rio quase sem peixe é um exercício de meditação. A mente voa. Imagina-se o fundo do rio, escuta-se um pássaro por horas. Bichos que estralam gravetos. Cutia que aparece do outro lado do rio, lenta, precisa. Família de jacus caminhando com seus pintos por cima das costas. Jibóia crescida subindo o rio sinuosamente. De vez em quando uma lontra. Visões de anos de solidão, pescando ali em silêncio e sem companhia. Certa vez resolvi levar comida para os peixes. Amarrava espigas de milho, jogava quirela de milho e também mandioca amarrada. Quando as capivaras não comiam tudo, ia aumentando o movimento da pescaria. Coisa pouca, mas no fim de semana a turma adorava aquilo tudo frito com a cerveja. O peixe era um pretexto para ficar ali, perdido, integrado e interagindo. Gostava tanto que ficava no meio daquelas tempestades e raios, só para ver estiar e vir aquele sol brilhando tudo em volta. É impressionante como após uma chuva os sons da mata duplicam. Parece saudação.

Algumas vezes vinham alguns comentários sobre o paciente pescador. Apesar de tantas horas, no final da semana, parecia até uma pescada razoável. Um dia de manhã, veio o garoto vaqueiro tirar leite. Comentou comigo que um amigo dele, do vilarejo, queria pescar comigo. Perguntou se eu não me importava. Disse que não – claro que não! Perguntei quem era o garoto. Apresentou-me. Travava-se do Euclides, conhecido como Crid. Tinha apelido de Costinha por causa do nariz avantajado. Fez recomendação de esquecer o apelido. Pedi-lhe que avisasse ao tal amigo para vir no dia seguinte.

Por volta das onze horas, estava ali debaixo das jaqueiras, ao lado de um tronco largo, antigo, caído, onde havia um verdadeiro húmus. Com um enxadão e pote, pegando minhocas. Aquilo era bater e minhoca pular para todo lado. Ficava cercado de um exército de galinhas, galos, frangos e pintos. Era incrível a coragem deles. Não admitiam tal iguaria não ser dividida.

Já com o pote quase cheio, em quantidade dobrada, visto que dividiria com o novo companheiro, ouvi um “tarde!”. Virei-me meio assustado porque estava concentrado e vi um senhor. Devia ter quase setenta anos. Calça de tergal lisa, camisa de manga comprida, botinas e um cinto apertando uma barriga avantajada. Apesar do chapéu de palha enorme, percebi alguns cabelos brancos, porque eu estava agachado, olhando para ele. Reparei aquela armação de óculos bem antiga, grossa e as lentes me pareceram bem embaçadas. Dia muito quente.

    Respondi:

    - Boa tarde! Pois não.

    - Eu sou o Crid. Vim pescar.

    - Prazer Crid. Meu nome é...

    - Já sabia, disse-me.

    - Você não trouxe suas coisas de pesca?

    - Sim. Trouxe. Deixei no caminho. Vô pegá lá na ida.

Peguei minha mochila, a vara de pescar e o saco de quirela dos peixes. No meio do caminho, ele entrou no mato e veio com sua vara de pescar que, pelo tamanho, dava para chegar quase até ao meio do rio. Reparei que ele vinha também com um saco daqueles de farinha de trigo que vemos nas padarias. Era tão alvo que parecia que nunca alguém o havia tocado. Vinha dependurado nas costas, parecendo o de um papai noel. Tinha um volume razoável. Logo imaginei que ele devia estar com alguma informação desencontrada. Para encher aquele saco de peixe, só com uns duzentos anos pescando ali.

No caminho foi me contando algo a seu respeito. Tinha dirigido o caminhão de lixo na Grande São Paulo por quase 40 anos. Agora vivia de sua aposentadoria. Tinha os seus problemas de pressão, deficiência cardíaca e uma alegria contagiante. Tinha vindo morar perto dos parentes. Não pude deixar de reparar que ele ouvia pouco, por isso falava muito alto.

Chegamos no local de pesca. Um poço verde, espelhado, com certa sombra daquelas árvores antigas. A água fazia a curva ali e descia mansamente. Como o lugar era apertado para dois, e também porque a vara de pescar do Crid era imensa, daria problema na certa se ficássemos juntos. A uns dez metros tinha uma grota, seca, com um tronco de árvore para atravessar para o outro lado. Ele aceitou atravessar, muito ressabiado com o vão abaixo. Com pouco equilíbrio chegou do outro lado e ficou lá satisfeito.

Coloquei minhas coisas um pouco atrás de mim, como de costume, para evitar que caíssem no rio. Preparei o anzol e dei uma olhada nas minhocas. Estava tudo certo. Atravessei pelo tronco da árvore e levei o pote de isca para ele, que tinha esquecido. Quando retornei e fui jogar a isca na água, vi que ele já estava pronto. Daí começou uma cantoria no maior volume: “minhoquinha, minhoquinha vai lá no fundo e traz um peixinho para o narizinho.” Não resisti e caí na maior risada. Nunca tinha ido pescar com tamanha barulheira. Para ele era como se estivesse sussurrando.

Enfim começou a pescaria. Nada de peixe. Passados uns dez minutos, levo o maior susto com ele me gritando:

    - Ei fulano! Quer um pedaço de rapadura???

    Respondi baixinho que não queria.

    - Quer ou não quer???

    Ele insistiu simplesmente porque não ouvia.

    Gritei que não.

    - Aqui não tem peixe não! Nem belisca!

A essa altura eu já estava rindo muito daquilo tudo. Hoje é dia de interagir e viver a presença dele – pensei.

Em meia hora compreendi perfeitamente o que aquele saco de farinha de trigo tinha por função. Ofereceu-me rapadura, queijo, uma dose de pinga, algumas espigas de milho assado, um pouco de farofa, uma cabaça com água, garrafinha térmica com café, algumas laranjas e limas e também alguns pedaços de pão. Como ainda não havia completado nem duas horas que tinha almoçado, vinha respondendo que não.

    - Ei fulano!! Você não é de comer, não?

    Respondi que tinha almoçado.

    - Gritou ainda mais forte que ele também.

Rindo muito daquela cena, fui para o outro lado e sentei ao lado dele. Abri o saco do papai noel e tomei um gole de pinga, mordendo um pedaço de queijo. “Ainda bem – disse-me ele – pensei que era fresco! Sujeito aborrecido de cidade.”

Voltei para o meu lugar e fiquei observando a paisagem. Tranquilo, tudo numa paz enorme. Ainda refleti – quando poderia imaginar que estaria aqui, nesse exato momento de um tempo universal, com alguém tão especial e cordial. Não foi uma fração de segundo do pensamento, ouvi uma barulheira e ele gritando muito. Estava dependurado e preso no meio de umas galhadas da beira do rio. Não sei como, mas estava meio de cabeça para baixo. Eu tive de sentar porque não aguentava de tanto rir. Foi só um instante para ele começar a me xingar de tudo quanto é nome. Corri para o outro lado, deitei-me no chão e ofereci-lhe a mão, porque era muito pesado e teria que arrastá-lo pelo braço esquerdo, até que ele pôde firmar o pé direito num galho e chegar firme no barranco. Ele estava branco de susto e muito nervoso.

    - Desculpe-me, não sabia que o senhor não sabia nadar.

    - Eu sei nadá sim!

    - Então porque estava gritando daquele tanto?

    - Porque meus braços estavam presos e tinha uma aranha enorme com as patas no meu narizinho!!

Rolei de rir no chão daquela mata. Sabe quando se começa e não consegue parar? Ele não aquentou e começou a rir muito também.

Acabou a pescaria. Ficamos ali conversando. Ouvi muitas história sobre ele dirigindo o caminhão na Grande São Paulo e a saudade que sentia dos tempos de quando era jovem. Também falou da esposa que deixou para trás e tantas outras coisas que me senti tão pequeno diante dele.

Pegamos o trilheiro de volta para o sítio. Na porteira, ao me despedir dele, me fez uma pergunta: “você é bobo assim desse jeito sempre? Rindo assim sem parar?” Não teve jeito. Sentei na beira da estrada e chorei de rir.

Muitas vezes depois, regressando ao sítio novamente, tinha sempre um presente para mim. Um cristal lapidado, uma rapadura, um casco de tatu. Tudo presente do meu amigo Crid.

Passados esses anos todos, estou aqui me recordando dele. Nunca mais o vi.

Saudade de você, Crid!

J.H.R

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Há pessoas neste mundo que deixam marcas pela simplicidade e descompromisso em Ter que Ser. Dias assim lavam a alma e alimentam o espírito.

    ResponderExcluir
  3. "O tempo não pára! Só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo." Mário Quintana

    ResponderExcluir
  4. Esse seu texto me levou pra um lugar muito parecido que tive na minha infância ,só me trouxe boas e felizes lembranças !Engraçado comentar isso exatamente um ano depois de postado!Adorei!

    ResponderExcluir