domingo, 7 de novembro de 2010

Bebendo os vivos e os mortos

Aniversário da Patrícia. Para nós, seus amigos, é a Ora, que alguém disse um dia se tratar de oráculo. Pegou e ela aceita. Ela sempre pede para não comemorarmos no dia dois de novembro. Diz que fica dividida entre brindar aos que vieram ou chorar por aqueles que se foram.

Sempre respeitamos. Combinamos para o dia seguinte. A Ora escolheu aquele bar alternativo de sempre. Diz gostar dos “bichos-grilo”. De fato é muito bom o lugar. Um som de primeira: com muito blues, jazz e às vezes um rock and roll. Fiquei com o papel de chegar mais cedo para segurar uma mesa.

Lá pelas nove e meia, foi chegando o pessoal. Todo mundo brindando, falando do dia que tinha vivido e, invariavelmente, já tinham compromisso para aquela noite. Uma dose aqui e outra ali, logo o grupo foi se reduzindo.

Ao meu lado estava sentada a Santinha - apelido que recebeu do pai quando criança. No princípio a mãe odiava. Um dia a menina se vestiu para a primeira comunhão e lhe colocaram um lenço branco na cabeça com aquele vestido com cara de roupa de padroeira. Resignou-se, a mãe, emocionada. Desde então é a nossa Santinha. Fomos trocando as impressões de dias que não nos víamos. Ela é agente da delegacia da mulher. Quando ela recebe os batedores de mulher, o apelido fica meio sem sentido. Contou-me alguns casos e logo lhe dei razão.

Por volta das onze horas e meia, o grupo se reduziu a mim, Ora e Santinha. Já um pouco alegres, vinham me contando estórias sobre os seus bichos de estimação. Verdadeira família. Santinha vive com três gatos e Ora com suas duas cadelas. “É unanimidade, eles entendem tudo o dizemos e fazemos. Inclusive quando estamos tristes. Ficam preocupados e querem nos animar de qualquer jeito”. A Ora ainda disse “só não falam para não trabalhar”.

Daí a pouco chegou uma retardatária. Era a Roca. Gaúcha risonha, divertida e com aqueles olhões filmando tudo. Eu não a conhecia. Apresentaram-me. Ela cochichou algo para a Ora e me olharam. Ainda ouvi a Ora dizer: “não, nada a ver”. Depois que já tinha tomado seus tragos e nós ainda mais alegres, me contaram do que se tratava. Roca tinha perguntado se eu estava com alguém, se era um “caso” de alguma das duas. Com a negativa, com sua lógica ligeira, deduziu: é gay!

- Disse-me. Bá!! nada pessoal. Desculpe-me.

- Sem problemas.

- Sabe como é, néeee?. Hoje tá tudo bagunçado.

Com aquela alegria toda ainda refleti. Bar é um lugar de metamorfoses. Chegamos, sentamos, pedimos uma bebida e ainda somos operários, professores, médicos, empresários... no final, sem exceção, somos todos filósofos. Pensei na polis, nos pré-socráticos, com toda aquela tragédia, regados a um farto vinho e inspirados por Dionísio. De fato, isso é coisa antiga. Só estamos seguindo a tradição, embora com deuses diferentes e novas tragédias.

- Sabe? - Ora se dirigindo a mim – eu, Santinha e Roca não temos filhos. Eu e Roca já não podemos mais engravidar. A Santinha ainda tem uns dois anos pela frente. Estou tentando convencer a Santinha sobre uma coisa e queria a sua opinião.

- Claro! Pode falar.

- É assim. A gente quer que a Santinha fique grávida e divida a criança com a gente. Seríamos três mães da mesma criança.

Tomei mais um gole, para clarear mais a idéia.

- Espera aí, Ora, primeiro será preciso encontrar um pai que aceite três mães. Já pensaram e resolveram esse detalhe?

- Já sim. Queremos alguém que seja amigo, conhecido de longa data, que já tenha seus filhos, resolvido nesse aspecto. Afinal, vai ser apenas um doador.

- Humm entendi. Refleti um pouco. Olhei para os lados. Tomei mais um gole do meu Red. Quando voltei o olhar, estavam assim paralisadas e me olhando...

- Ainda tenho dúvidas – Santinha me olhando, como que para me salvar – pois eu é que vou gerar a criança, vou carregar na barriga, enjoar, engordar e outras coisas mais que dizem por aí. Depois disso tudo será que vou mesmo querer dividir?

- Queria saber de vocês três outro detalhe. Vocês vão morar juntas com o bebê?

- Roca – quase gritando – vocês estão muito preocupados com detalhes bobos. Era preciso primeiro ter o bebê já na barriga. Teriam nove meses para acertar os detalhes. Se ficarmos aqui pensando demais, o tempo fértil de Santinha vai diminuindo e nada de perspectiva de um bebê.

- Espera, Roca! Disse Ora me sondando, querendo entender os mínimos detalhes da minha expressão facial. Deixe ele falar. Afinal um possível pai nos fará perguntas parecidas.

- Acho que vocês deviam procurar um advogado. Bem, é melhor não! É capaz dele querer interditar vocês. O maior risco é a Santinha não querer depois dividir o bebê... que tal mudarmos de assunto? Esse assunto não combina com bebida, quem sabe amanhã não achamos uma idéia mais razoável?

Concordaram.

Santinha me contou que a idéia de Ora está motivada por causa de seu novo hóspede. Na verdade são três. Um casal jovem que tem um bebê de mais ou menos um ano e meio. Desde então não pára de pensar na hipótese de ter um para sempre. A questão é como convencer a Santinha. Convencer a Roca foi mais simples.

Santinha e Ora são amigas desde os treze anos. São como irmãs. Talvez mais que isso, porque tem um respeito e admiração invejáveis.

Ficamos um pouco em silêncio observando o lugar e reparando mais na música. Roca encarou um cara que vinha passando. Com aqueles olhões não escapava nada. Por isso que às vezes disparava um “o que você disse?”, porque o pescoço não parava quieto no lugar. Lá e cá, lá e cá... “nossa!! Você viu, Ora?”... não deixava de ser divertido. Acho que ela estava naqueles dias...

Em uma dessas viradas, parou me olhando e disse:

- o que você acha do orgasmo feminino?

- Hã??? o que disse?

- Isso mesmo. Assim, naquela hora, no meio do tesão, da loucura... o orgasmo. O que acha disso?

- Você quer saber minha opinião sobre a sensação de vocês, o êxtase, as contorções, etc? Ou o que ele representa, a sua função, porque ele vem e porque não vem?

- Quero saber qualquer coisa! Quero apenas que me fale. Fale algo!!!

- Saí com fulano outro dia – interrompeu Ora – aquilo sim é que é orgasmo.

- Não ando tendo sorte, Santinha falando do seu último encontro.

Ufa!! Escapei! Não que seja em si um problema, mas falar sobre isso naquele momento não me agradou.

Continuaram com as trocas de impressões (digitais ou não) sobre a liberdade sexual. O papel da mulher na conjuntura política e social. A mulher no poder. Observei bem e é bom ouvir isso diretamente delas, sem tradução por terceiros, ou melhor, por homens.

Assim, meio sem querer, como se estivesse pensando alto, Santinha falou, olhando para o lado, “na verdade toda mulher quer um homem para amar e ser amada, uma casa, filhos e tentar ser feliz”. Parou um silêncio frio naquela mesa. Pensei: “não difere do que os homens querem”. Tantas palavras e discursos para esconder o “simples”. Talvez venha daí esse gigantesco desencontro que notamos pela rua. Um monte de gente só e armada até os dentes. Isso, até o dentes, por onde passam as palavras.

Mas não podemos negar que as mulheres estão cada vez melhores. Decidem o que querem, fazem da vida a sua escolha, viajam, trabalham, são mães conjuntas, andam sozinhas por aí ou aos bandos. Analisam seus processos de orgasmo – não aceitam mais ficar sem ele. Nós, homens, estamos ficando para trás?

Pensei em pedir mais uma dose. Desisti. Elas estão muito altas. Vou me controlar por aqui. Pedi água. Na hora que se passou, com muita água, fui tomando o controle. Roca e Ora se levantaram para ir ao banheiro. Eu e Santinha corremos para ajudar a situação. As duas estavam com uma crisesinha de labirintite.

É melhor pedir a conta.

Fomos embora. Acompanhei a Santinha até a casa de Roca. A Ora iria ficar por ali também. Nos despedimos.

Em casa, no escuro, deitado e olhando para o teto, veio aquele sono bom, aos poucos, intercalado por bebê dividido.. bocejo... três mães numa mesma casa...viro de lado... santa padroeira... inconsciência...diga-me logo!! Orgasmo... orgasmo.... oráculo.

J.H.R

5 comentários:

  1. Hahahahahahah.....Não vou responder agora a sua pergunta mas o texto esta bárbaro!

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  2. Conversa animada, hein?! E você, super cotado. Adorei!!!
    Sobre os homens ficarem para trás, você já sabe a minha opinião. Escrevi sobre isso no meu blog:
    http://patriciasampaio.blogspot.com/2010/10/adaoeva.html
    Os homens são lindos!

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  3. Pat, fiquei rindo sobre o "super cotado". É pura ficção. Lembra do invisível real. Então, é da mesma forma.

    Adoro quando vem aqui. Obrigado. Bj

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  4. Ah, essas mesas de bar!!! Momento bom pra observar o que as pessoas guardam dentro de si, seus desejos mais loucos!!!

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  5. Adorei ainda mais!!!! Verdades inventadas ;)

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