quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Construindo um personagem.

Apresento-me. O que disso poderá ter proveito é uma questão que não me diz respeito. Quando aprendi a ler e escrever ninguém me disse para que servia. Ainda não sei. Apenas uma vez queria ser sincero, ao extremo, verter uma verdade infundada, pois que não existe verdade pessoal. Tive sim medo de nascer. Vim prematuro e respirando mal. O que se sabe é que alguém me deu um ponta-pé e me colocou no mundo antes do tempo. Para mim e para ele. Nunca perdoei. Perdoar é coisa de santo e isso não sou. Nunca fui! Tentei ser normal a vida inteira e ela não deixou. Fui uma criança franzina e sorridente, embora a falta de ar me tenha dado um papel de espectador. Sempre achei que ganhar o que não se pede é pura falta de educação. Bem cedo vi três mulheres pintadas com cara de palhaço, sendo agasalhadas pelos bombeiros. Meu primeiro exemplo de força. Por três vezes ainda caíram ao meu lado, sujeitos anônimos, língua enrolando e babando. Desejo de retorno. Meu primeiro senso de responsabilidade foi designado por uma desconhecida: passear com o seu cachorro pelo menos uma vez ao dia. Sua serviçal incorporava às vezes e me dizia coisas do passado e do futuro. Meu primeiro contato com a vida após a morte. Fui matriculado no jardim de infância público. Pegou fogo antes de minha entrada. Soube que em suas ruínas fumavam e cheiravam coisas perigosas. Fui direto para o primeiro ano. Tive medo. Chorei. Pediram-me para fugir das professoras gordas e com óculos. Meu primeiro contato com a tirania. Desse primeiro dia de aula, ainda sinto o cheiro de café na cozinha, o vulcabrás esmagando os dedos e alguém num rádio velho chorando: “eu chorei na avenida, eu chorei..” Sim, era uma atmosfera afirmadora. Vence ou sucumbe. Não custa dizer que cantávamos o hino nacional em homenagem aos porões que ninguém sabia. Meu dia de nascimento e signo foram apontados como sendo dos profundos e melancólicos. A senhora sabe o que é profundidade? Só pude entender um pouco melhor a vida quando me apresentaram os bichos. O sorriso dos bichos vem com os olhos. Tive muito medo de Deus. Quem não teve? Sabe tudo, vê tudo e ainda castiga. Na minha época padre era vestido de luto. Um dia ouvi Romaria, com a Elis tristonha: “como não sei rezar, queria mostrar meu olhar... meu olhar”. Poeta sujeito-bicho como eu. A única bondade que desenvolvi sozinho foi a de não aceitar injustiça. Queria estar ao lado deles, mas depois entendi o motivo: meu primeiro senso de rebanho. A senhora pode entender o meu perfil psicológico? Então me dê uma benção. Um dia quis ser um só com uma menina. Chamaram de saliência e pouca vergonha. Bem tarde uma mulher que não queria sexo algum comigo disse-me se tratar de amor. Algo iluminou o meu escuro interior. Crianças colecionam quinquilharias guardadas a sete chaves. “É meu, não mexa”. O fato é que tem uma hora que é preciso escolher: vou bater ou vou apanhar. Vou fazer parte ou me afastar. Amar ou fingir. Coloquei essas palavras num saco de papel, com letras separadas, sacudi e deu no que deu: EU! Duas letras! Senhora, duas letras!!! Nem me venha falar como é no inglês! A minha designação devia ser no mínimo ANTICONSTITUCIONALISSIMAMENTE. Não é que esse tamanho represente qualidade, mas a tontura que se é SER. Pelo bem ou pelo mal, assumi uma cadeira de juiz. Um deus na terra! Não, não combinou. Maldita hora em que fui ler Crime e Castigo, a G.H e a sua paixão, Riobaldo em guerra com o diabo, Mersault estrangeiro em Argel. “Afasta de mim esse cálice”. “Crepúsculo dos Ídolos”. Minha senhora, me ensina a ser um indivíduo comum no meio do nada? Não pense que desisti: tenho carro, tenho emprego, casa, filhos, fui casado e já vi o mar. Mas a verdade mais fundamental e terrível que tive acesso foi: pode-se mentir e enganar quem se ama. Depois disso ainda é possível se escandalizar com a fome, guerra, tortura e ideologia? A senhora poderia me fazer a gentileza de me dizer: eu tenho um perfil psicológico?

J.H.R

2 comentários:

  1. Bravo! Sensacional! Você tá cada vez melhor.
    Aproveitando, feliz aniversário!
    Beijos,
    Pat

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  2. Obrigado, Pat. É sempre um prazer quando aparece aqui.

    Obrigado também pelas felicitações. Bj

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